"Os índios também fazem parte do futuro"



Rafael Soares 08.06.2012 12h30
Encontrar Marcos Terena pelo telefone não é fácil. Conseguir alguma resposta por e-mail também é tarefa inglória. Após uma semana de tentativas frustradas de contatos com o líder indígena, a última cartada: o Facebook. Poucos minutos depois da mensagem enviada, uma resposta. Logo em seguida, um bate-papo pela rede que culminou com a marcação da entrevista. Terena é mesmo um índio ‘high-tech’.
O envolvimento com a rede tem uma razão: a luta pelos direitos dos índios. No início da década de 70, Terena chegou à Brasília, onde mora até hoje, vindo do Mato Grosso do Sul, no Pantanal, terra de sua tribo, os terena. Na época, era piloto de avião. A convivência com o ambiente politizado da capital trouxe a Marcos, que até então tinha vergonha de suas raízes, a noção do que realmente significava ser índio: valorizar suas tradições e sua forma de viver no mundo e lutar para que elas sejas respeitadas. Em 1979, criou, junto a outros importantes caciques, como Mário Juruna e Raoni Txucarramãe, a União das Nações Indígenas, organização que deu origem ao movimento indígena no país.
A partir de então, a carreira de piloto de avião teve de dar lugar à de porta-voz dos índios brasileiros, como mostra sua participação em momentos-chave da história do país nos últimos 30 anos. Em 1988, foi um dos articuladores dos direitos indígenas junto à Assembleia Constituinte. Cinco anos depois, durante a Eco 92, organizou a Conferência Mundial dos Povos Indígenas sobre Território, Meio Ambiente e Desenvolvimento. Ao longo da década de 90, teve voz ativa na demarcação de várias terras indígenas de norte a sul do país. Hoje, ocupa uma cadeira na ONU como representante dos povos indígenas e é o responsável pela mobilização dos índios durante a Rio+20.
Paralelamente às discussões envolvendo líderes de todo o planeta, em Jacarepaguá, na Aldeia Kari-Oca – mesmo local onde ficaram hospedados há 20 anos – 1.200 índios de todo o mundo vão discutir e dar sugestões sobre os rumos do planeta. O resultado do encontro será enviado, em forma de um documento, à Dilma e companhia no Riocentro.
Da economia verde ao desenvolvimento sustentável, passando pela demarcação dos territórios indígenas, Terena tem opiniões formadas sobre todos os temas. Com a autoridade de quem circula com a mesma familiaridade por aldeias, cidades grandes e pela internet, o líder indígena sabe que pode dar importantes contribuições ao debate sobre meio ambiente. Afinal, como ele próprio diz, “os índios também fazem parte do futuro”.
Como é ser índio no século XXI? Como o índio que nasce em um século marcado pelo encanto com as novas tecnologias lida com a preservação das tradições indígenas?
O jovem indígena é igual a qualquer outro jovem, mas com algumas particularidades: ele vive em um contexto diferente e existem 240 formas diferentes de ser um jovem indígena – afinal existem 240 etnias no Brasil. Mas esses jovens, da mesma maneira que os brancos, ao entrarem em contato com o mundo da tecnologia, se sentem seduzidos e são compelidos ao consumo. Assim como há 500 anos, quando os brancos portugueses trocavam a força de trabalho dos índios por espelhos ou outros objetos.
No entanto, há uma opinião, sustentava por muitos intelectuais, que é falsa: a de que o índio não consegue e não pode dominar a cultura branca. Em 1977, um grupo formado por 15 jovens índios – eu era um deles – se reuniu em Brasília para discutir essa questão. Nessa época criei uma frase que pode ser aplicada até hoje: “Eu posso ser o que você é sem deixar de ser quem eu sou”. O índio, ainda hoje, precisa combater a tese de que ele não pode ter acesso a esse mundo novo. Podemos ter a mesma soberania que temos nas tribos na sociedade moderna.
Os jovens que conseguem pular esse muro de protecionismo se tornam líderes, podem dialogar com o branco e dar voz aos índios. Só não pode cair no conto do consumismo. É preciso saber usar a tecnologia de ponta, mas ao mesmo tempo não se esquecer de onde veio. Temos que usar a tecnologia para transmitir os direitos e preservar as tradições do índio.

Como o índio pode colaborar com o debate atual sobre o meio ambiente no Brasil? Podemos aprender sobre desenvolvimento sustentável com os índios?
Está lá na agenda da ONU e até na pauta de discussões da Rio+20: eliminar a pobreza. A discussão é importante, mas é preciso pontuar: o índio não é pobre. Temos água, urânio e nióbio em nosso território, 15% do país é formado por reservas indígenas. No entanto, não medimos riqueza como o homem branco, que olha a floresta como mercado. Outro ponto em que devemos ser ouvidos é o desenvolvimento sustentável. Temos uma tradição milenar e cotidiana em conviver com recursos naturais e podemos ser ouvidos quanto a isso. Um exemplo: a questão do crédito de carbono pode ser equacionada se pensarmos em formas mais limpas de produzir e conviver com a energia.
Mas repito: ao contrário de outros atores que têm voz ativa nessa discussão, o índio não mistura ecologia com economia. Essa é uma analogia do homem branco. O índio não pode achar que vai aguentar a pressão das estradas e das hidrelétricas. Precisamos defender nossa forma de encarar o mundo e defender nossa terra, que é legítima.

O que você pensa sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215/2000, que tem como objetivo transferir do Poder Executivo para o Poder Legislativo a decisão sobre a demarcação de terras indígenas?
Na prática, a aprovação da PEC vai ser um retrocesso. Acordos do sistema governamental no Brasil, não importa o governo, não levam em consideração a voz do índio. Essa medida, se aprovada, vai ser mais uma dessas. A Funai, que hoje é quem determina as terras indígenas, não é a instituição ideal e não representa os índios. Mas o Congresso tem outros interesses, contrários aos nossos.
A Funai é importante e não abrimos mão dela: ela não pode ser extinta por conta da dívida que o país tem conosco. Mas ela deveria ser diferente. Existem índios competentes para gerir a Funai e ela deveria ter poder de ministério, para termos maior representação e peso político.

Você acredita que houve avanços na questão dos direitos indígenas nos últimos 20 anos?
Muita gente pensa que não mudou muita coisa da Eco-92 para hoje. No Brasil, acredito que a questão indígena não seja mesmo muito diferente, mas, internacionalmente, esta conferência foi um marco para o movimento. Aqui precisamos educar 500 anos de colonização, sem lástimas quanto ao passado. Mas no exterior a voz do índio passou a ter mais amplitude. Já estamos na segunda década dos povos indígenas, instituída pela Organização das Nações Unidas e já temos fóruns permanentes na organização discutindo a questão indígena, sem contar com a promulgação, em 2007, da Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
A presença de índios em universidades é benéfica? Ela pode afastá-lo das tradições? Você concorda com as cotas para índios nas universidades públicas?
Sou completamente contra as cotas para índios. Nossa questão não é igual a do negro, não temos um contexto de preconceito racial. E, pessoalmente, acredito que não precisamos de ajuda para passar para universidades. Há, inclusive muitos índios que utilizam as vagas das cotas para entrar na universidade e não se preocupam com a questão indígena. Sei porque frequento o meio universitário e conheço. Agora, se você me perguntar, sou a favor das universidades indígenas, faculdades que englobem os valores que são importantes para o nosso povo — como a vida prática nas aldeias, a questão da espiritualidade e nossas línguas — diferentes dos levados em consideração nas universidades tradicionais.
Essa questão já reivindico há algum tempo. O governo faz promessas, mas argumenta que, se já existem as cotas, não há por que criar uma universidade para índios. Não acho esse um argumento válido.
Por outro lado, não acho que uma universidade convencional seja maléfica para o índio. Mas ele precisa saber como usar o que aprendeu em prol do que ele é — sem esquecer de onde veio, repito. Quando consegue alcançar esse equilíbrio, ele vira um líder. E é disso que o movimento indígena precisa.

A Rio+20 pode representar um marco? O que o movimento indígena pretende reivindicar na conferência?
Nosso principal desafio para essa conferência é mostrar que podemos nos organizar e movimentar. Serão 400 índios brasileiros e mais 800 do mundo todo. O que nos falta é apoio político e financiamento. Mas podemos ser aliados nessa luta, e não precisamos sair da aldeia para isso. O índio pode e deve assumir um papel de protagonista. Se no mundo já somos reconhecidos, agora é a vez do Brasil respeitar os direitos do índio e a soberania de seus territórios.
Como vão ser articuladas as discussões dos líderes indígenas nacionais e estrangeiros durante a conferência?
Durante três dias (14, 15 e 16 de junho), vamos nos reunir na Aldeia Kari-Oca para discussões, que vão gerar um documento, assinado por líderes de todos os cantos do mundo. Ele será enviado para o Riocentro. Uma das nossas principais reivindicações, que fatalmente estará no texto, diz respeito à tão falada economia verde. Os três pilares dessa “nova” economia, defendidos inclusive pelo governo brasileiro, seriam o crescimento econômico, a preservação ambiental e a inclusão social. No entanto, é fundamental que não esqueçam a questão da cultura, que deveria ser um dos pilares. A preservação das culturas também deve fazer parte do futuro

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