Você "falar" minha língua?

Estava eu numa cerimônia política em que se discutiria a implantação de políticas públicas para os indígenas da cidade de São Paulo. Eu havia sido convidado, junto com os parentes guarani da capital, para fazermos parte daquele evento. Eu coloquei um blazer bem confortável, pois fazia frio. Enfeitei minha cabeça com um belo cocar que havia trazido de minha aldeia dias antes. Aproveitei que os parentes guarani estavam todos pintados com sua marca tradicional e fiz em mim uma pintura característica de meu povo. Assim me apresentei. A cerimônia correu uma maravilha e todos estávamos relativamente contentes com o desfecho e a hora era de comemoração pela conquista alcançada. E foi aí que aconteceu uma cena muito surreal, coisa que se contarem a gente não acredita. Vou contar, pois a vivi. Olívio Jekupé, escritor Guarani, e eu nos postamos de pé para observar o movimento que aquela hora estava bastante frenético. No palco do evento algumas atrações se revezavam mostrando a diversidade de manifestações culturais. Eram grupos do movimento negro, de culturas populares, ciganos, entre outros. Ficamos ali meio encolhidos e por conta do frio cruzei meus braços numa pose a lá touro sentado. Fiquei assim imperturbável por alguns minutos até que me dei conta que à minha frente estava postada uma senhora que me observava com cara de quem não estava entendendo nada. Me olhava como se mirasse uma escultura grega de carne e osso. Quando dei por mim e percebi a situação, fiz uma cara bem sisuda, minha melhor cara de mau e a fitei. Ela levou tamanho susto que deu um passo para trás. Depois foi se achegando até que criou coragem para falar. - Você fala a minha língua? Não estranhei a pergunta. Afinal, neste trabalho que desenvolvo há muito anos, aprendi não estranhar nada especialmente quando a pergunta é feita por crianças. Mas neste caso, balancei. E resolvi não responder. Pior que isso: ignorei como se não fosse comigo. Permaneci ali, de pé e com os braços cruzados exercitando minha fama de mau. A senhora continuava postada à minha frente. Não arredou pé e também não demorou muito para que meus amigos que estavam por perto se aproximassem ainda mais para ver o desenrolar da cena. Alguns já até riam tentando adivinhar o desfecho. De repente, a senhora – que não devia ter mais de um metro e meio de altura e tinha cabelos vermelhos – voltou ao “ataque” falando um pouco mais alto, mais lento e acompanhada de mímica. - Você fala a minha língua? Tive que fazer um esforço danado para não soltar uma sonora gargalhada. A cena era muito cômica e os parentes indígenas já não se aguentavam mais. Mesmo Olívio – que sabia o que eu estava pretendendo – não interferiu e deixou rolar. Para variar fiquei imóvel diante da pequena senhora que continuava sem acreditar que estava diante de um “selvagem” que sequer sabia se articular em português. Mas ela precisava tirar a prova dos nove. - Você falar [gestos, mímicas, trejeitos bocais] minha língua? Nessa altura ninguém mais se aguentava. Sequer acreditavam naquilo acontecendo. Vendo que não conseguia arrancar de mim uma única palavra em português, a nobre senhora apenas virou-se para o Olívio Jekupé e disse: - Acho que ele não ouve direito. E foi embora sem esperar nenhuma explicação.

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